“No posto de controle, não importa a sexualidade do soldado”: Sobre pinkwashing e homonacionalismo (II)

Neste segundo artigo da série, vamos desbravar casos concretos de Pinkwashing na geopolítica atual. Como mencionamos na semana passada, o país que tem melhor transformado sua auto­imagem através da política de Pinkwashing é Israel, cujas autoridades perceberam nos anos 2000 a urgência em alterar a imagem do país para continuar recebendo apoio que o legitime. Em 2007, o projeto passa a ser efetivado para o grande público baseado em um princípio que mistura uma suposta defesa das liberdades democráticas com o velho conceito de que “sexo vende”. Surgem as iniciativas de angariar empatia ao país através da hipersexualização da mulher judia-branca-israelense  e de uma abertura controlada para certas populações LGBTs.

Amiga, para que tá feio: repaginando Israel

Foi a coalizão Brand Israel Group, formada por sete empresas estrangeiras de comunicação e marketing, que após 3 anos de pesquisas constatou que o jovem estadunidense conhecia, mas ignorava Israel por sua imagem estar sempre atrelada à guerra e religião. Dado ao fato de que o público desejado não entendia e não se interessava pelo conflito, era necessário invisibilizá-­lo. O projeto de repaginação israelense diante da opinião pública internacional consistia em propagá-­lo como um país relevante, moderno, jovem, cosmopolita e liberal, comprometido com a paz e a democracia. Focar­-se no “elemento humano” transformaria a “Nação da Start­Up”, ​dona de um vasto patrimônio histórico, a ser admirada por sua “energia criativa” e avanços tecnológicos; o país perfeito para se fazer negócios.

A primeira fase de trabalhar sobre “o elemento humano” do país se baseou na figura feminina. A exploração da imagem das jovens em serviço militar foi iniciada com uma parceria do Consulado Geral Israelense e da revista Maxim ao promoverem um ensaio fotográfico com belas soldadas do exército israelense (IDF em inglês). A naturalização dessa abordagem chegou ao cúmulo de dois veteranos do IDF criarem uma marca de roupas, cuja divulgação foi o lançamento do calendário com soldadas. “Máquinas de guerra altamente treinadas de dia, super modelos de noite”, dizia o anúncio.

O objetivo da MTKL apparel é “servir como plataforma para mostrar a realidade da vida israelense, que é forçada a existir, literalmente, sangrando a beira da civilização ocidental”. Em entrevista ao principal talk show matinal do país, Ammon Shenfeld expõe que a idéia para a marca surgiu ao perceber que seus amigos estrangeiros se encantam com o país ao repararem o quão sexy é cruzar com soldadas armadas tomando sorvete a beira mar. A apresentadora Hila Korach comenta “fico pensando nas pessoas que estão se opondo a Israel e dizem “Olha o que vocês estão fazendo em Gaza!”. Quando virem essas fotos dirão “Ah, eles podem fazer o que quiserem em Gaza”. O entrevistador Avil Gilad complementa: “Me dê uma soldada do IDF como porta­voz. Inteligente, é lógico. Preferencialmente etíope. Bonita. Ela só precisa ficar lá, paradinha”. O ano era 2014, o mesmo em que Israel massacra 2000 palestinos em Gaza e um ano após estourar a denúncia de que o Estado estava esterilizando judias etíopes sem o consentimento delas, além das tensões relacionadas ao tratamento racista contra os refugiados africanos.

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Durante os ataques terrestres a Gaza em 2014, algumas páginas no Facebook, como a “Standing with IDF” (Apoiando ao Exército, em português) ganharam imensa popularidade. Garotas israelenses semi­nuas escrevia em suas coxas, seios e nádegas que amavam o IDF como forma de estimular os soldados a realizarem sua missão. A “arma secreta israelense”, como foi chamada pelos soldados idealizadores da proposta, tinha como objetivo mostrar a superioridade em relação ao Hamas, que supostamente não teriam mulheres tão bonitas ou sexualmente livres para estimularem os combatentes a lutar. Essa prática não é incomum, considerando que a experiência do serviço militar é divulgada para os jovens como algo similar às irmandades de faculdade americana dos filmes da sessão da tarde. Fotos similares são constantemente divulgadas nas redes sociais pelos jovens, no entanto, não revelam a verdadeira situação de mulheres e LGBTs dentro do exército.

O grupo Israeli Gay Youth divulgou em 2011 que 40% dos soldados LGBTs do IDF sofreram abusos no exército devido a sua orientação sexual. As agressões verbais e físicas e até mesmo o assédio sexual pioravam em situações de combate, fazendo com que embora dentre os 63% de soldados abertamente LGBTs em suas vidas civis, apenas 32% se assumiam no exército. O relatório da seção responsável por assuntos ligados às soldadas revelou em 2014 que 1 em cada 8 delas reportaram assédio ou abuso sexual no IDF. 40% das denúncias eram de contato físico e 4% eram de estupro. Ainda que 1073 soldados de ambos os gêneros procuraram o centro de apoio as vítimas para reportarem os casos de assédio sexual naquele ano, 60% desistiram de registrar queixa formal. Eles temiam retaliações, pois duvidavam que os agressores fossem punidos.

Amiga, não tenho como te defender! Do Pink Money ao Pinkwashing

Durante o processo de repaginação, houve um grande esforço de estado em transformar Tel Aviv em uma cidade aparentemente gay friendly. Apenas em 2011, a prefeitura e o Ministério do Turismo investiram 94 milhões de dólares com a Parada do Orgulho Gay na cidade, que é patrocinada pelo município. A inclusão de Tel Aviv nas listas de melhores destinos gays tem como objetivo atrair turistas homossexuais masculinos da América do Norte e Europa, combinando com o momento em que parte do movimento LGBTI acredita que a inserção no neoliberalismo através de um mercado especializado é sinal de maturidade.

Nesse sentindo, querer retratar o país a partir de Tel Aviv é uma deturpação e um exemplo concreto disso é a realidade em Jerusalém. Enquanto em Tel Aviv a Parada do Orgulho é uma política de estado, em Jerusalém ela acontece a revelia das autoridades. Os organizadores solicitam o policiamento da Parada para garantir a integridade física dos participantes, o que nem sempre é o suficiente, como nos mostra o caso do judeu ultra­ortodoxo israelense que após ser preso por dez anos, torna a esfaquear membros da Parada em 2015, matando uma adolescente.

A ​hasbara (termo usada para propaganda estatal israelense) tem se estendido também à produção cultural LGBT, como patrocínio de filmes e festivais sobre diversidade e ao caso da Arisa Party, a autodenominada “primeira festa gay do Oriente Médio”. O grupo performático trabalha geralmente com releituras em hebraico de tradicionais músicas árabes, protagonizadas por Uriel Yekutiel, um judeu israelense mizhari (de origem árabe) e Eliad Cohen, um modelo israelense ashkenazim (de origem do Leste Europeu). A princípio, parece extremamente progressivo a performance de um rapaz mouro, cuja aparência mistura algo de Freddy Mercury com uma intensa feminilidade, como é o caso de Uriel. No entanto, em vídeos como “Ma asita Li” a ideologia adotada pelo grupo é revelada ao contrastar uma caricatura de uma mulher árabe submissa, agredida por um tipo viril como Eliad, mas que não reage. Nesse contexto, Eliad é a representação do homem israelense ideal ­ branco, másculo e superior, cujo perfil é extremamente agradável para o público ocidental. Dessa forma, o salto alto de Uriel deixa de ser transgressor e se torna uma importante ferramente de ​hasbara.

Videoclipe de Ma asita Li

Em 2011, a Arisa Party veio ao Brasil para participar do 19° Festival Anual Mix Brasil de Diversidade Sexual, sendo patrocinada pelo Consulado Geral de Israel em São Paulo, como o próprio vídeo de divulgação mostra.

 

Turnê no Brasil patrocinada pelo estado israelense

Talkey, mas e os direitos?

Quanto aos tão alegados direitos LGBTIs em Israel, dois aspectos devem ser destacados: primeiramente, a hasbara dificulta distinguir quais são os direitos previstos por lei daquelas exceções fruto de vitórias jurídicas individuais; em segundo lugar, de que independente de quais sejam os direitos, eles se estendem apenas aos cidadãos judeus israelenses. Os palestinos dos Territórios Ocupados (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental) e palestinos­israelenses não tem acesso a esses direitos.

A lei israelense se apropriou em grande parte da legislação de exceção do Mandato Britânico na Palestina, portanto a homossexualidade foi considerada crime em 1948, reafirmada em 1977 e abolida em 1988, mas ainda assim havia perseguição policial. Até os anos 80, o IDF considerava a homossexualidade como uma doença mental.

De uma forma geral, existe a autorização de atividades sexuais, algumas leis anti­discriminação, reconhecimento de casamentos feitos nos exterior (o que permite a alguns direitos de pensão e derivados), a permissão de doar sangue e a possibilidade de prestar serviço militar sendo abertamente homossexual; ainda que já tenhamos relatado sob quais condições isso acontece.

É digno de nota que, em última instância, o direito de repassar bens entre cidadãos judeus israelenses (até porque casamentos inter­religiosos não são permitidos) e obter o maior número possível de pessoas no exército (ainda que signifique incluir, de algum modo, mulheres e LGBTs) são elementos interessantes para o Estado. Relembramos que Israel não é um país laico: na condição de um Estado oficialmente judaico, os únicos considerados cidadãos são aqueles que sejam judeus, as demais populações obedecem uma legislação diferente – o que implica em diversos impedimentos na vida prática. Escolas, hospitais, bairros, distribuição de água, entre outros serviços funcionam na lógica que ficou conhecida nos Estados Unidos como “separados, mas iguais”, antes de que o movimento negro daquele país se levantasse e vencesse a segregação oficial. Ou seja, ainda que uma pessoa tenha nascido dentro do território hoje sendo considerado israelense, ela se converte em um cidadão de segunda categoria se não for uma pessoa judia – independente de sua orientação sexual! Essa foi uma das maneiras encontradas pelo Estado de não permitir uma retomada palestina ao seu lugar de origem por vias legais, como compra de terras.

Então as LGBTs en Israel não podem se manifestar?

Podem e devem. Não se trata de que as LGBTIs israelenses não possam sair às ruas para reivindicar suas pautas,  o problema é que a reivindicação desse espaço na sociedade parte do pressuposto de que elas possuem um Estado. Porém, não estamos falando de qualquer estado nacional, mas de um cuja origem é o resultado de um projeto colonizador que impossibilitou que outro país tivesse a mesma chance de existir plenamente – deixando os seus habitantes históricos à mercê da nova ordem mundial.

Ou seja, se essas as pessoas LGBTIs israelenses podem ir na balada, desfrutar um dia de praia ou comer em bons restaurantes como tantas outras pessoas da classe média ao redor do mundo, é porque esse projeto de país triunfou. O fato de que qualquer judeu do mundo, ainda que nenhum dos seus antepassados tenham sequer pisado naquele território, possa se tornar cidadão israelense, enquanto milhares de palestinos que foram expulsos de suas casas a partir de 1948 morreram sem jamais obter a permissão de regressar para uma visita que fosse, é um sintoma das desigualdades que estamos abordando. Para falarmos em direitos LGBTIs em Israel, é necessário discutir como se formou este estado e quais são as regras fundamentais para garantir o seu funcionamento. As organizações LGBTIs israelenses necessitam articular suas políticas a partir deste critério e muitas, ao menos em relação aos territórios ocupados palestinos, têm tomado esse tipo de atitude.

O processo de organização do movimento LGBTI israelense e palestino será o próximo tema da nossa série. Chama aquela sua amiga que odiou a coluna porque ainda acha que é muito pior ser LGBTI nos países árabes para a gente debater a fundo todas as contradições e porque elas existem. Se fere as nossas existências, seremos uma grande e única resistência.


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